quarta-feira, 8 de abril de 2009

A crise do sr. Smith

Perambulando pela internet esses dias achei esse artigo (muito bom, por sinal) do Amartya Sen (aquele do Nobel "Desenvolvimento como liberdade)... Bem interessante, vale a pena ler.

A crise do sr. Smith AMARTYA SEN
FOLHA DE S PAULO
MAIS IMPORTANTE TEÓRICO DO MERCADO, ECONOMISTA
ESCOCÊS TAMBÉM DEFENDEU O PAPEL DO ESTADO PARA PROTEGER OS POBRES, DIZ PRÊMIO
NOBEL
Exatamente 90 anos atrás, em março de 1919, diante de mais uma crise
econômica, Vladimir Lênin discutiu as dificuldades do capitalismo contemporâneo.
Mas não quis escrever um epitáfio: "É um erro acreditar que não há saída da
atual crise do capitalismo". Essa expectativa de Lênin, ao contrário de outras
que ele teve, provou estar correta. Apesar de os mercados americano e europeu
terem enfrentado mais problemas na década de 1920, seguidos da Grande Depressão
dos anos 1930, no longo prazo, após o fim da Segunda Guerra [1939-45], a
economia de mercado foi excepcionalmente dinâmica e gerou uma expansão sem
precedentes da economia global nos últimos 60 anos. Não mais, pelo menos neste
momento. A crise econômica global ganha velocidade em ritmo assustador, e as
tentativas dos governos de contê-la tiveram muito pouco sucesso, apesar da
aplicação sem precedentes de fundos públicos. A pergunta que surge de maneira
mais premente hoje não é tanto sobre o fim do capitalismo, mas sim sobre a
natureza do capitalismo e a necessidade de mudança.
O que é preciso?
Nós
realmente precisamos de um "novo capitalismo", que carregue de uma maneira
significativa a bandeira do capitalismo, em vez de um sistema econômico
não-monolítico que utilize uma variedade de instituições escolhidas de forma
pragmática e valores que podemos defender racionalmente? Devemos buscar um novo
capitalismo ou um "novo mundo" que não precise assumir uma forma capitalista
especializada? Essa não é a única pergunta que enfrentamos hoje, mas eu diria
que é a mesma pergunta que o fundador da economia moderna, Adam Smith
[1723-1790], realmente fez no século 18, quando apresentou sua análise pioneira
do funcionamento da economia de mercado. Smith nunca usou o termo "capitalismo"
(pelo menos até onde eu pude verificar), e também seria difícil extrair de suas
obras uma teoria sobre a suficiência da economia de mercado ou da necessidade de
aceitar a predominância do capital. Ele falou sobre o importante papel de
valores mais amplos para escolher comportamentos, assim como sobre a importância
das instituições, em "A Riqueza das Nações". Mas foi em seu primeiro livro,
"Teoria dos Sentimentos Morais", publicado há exatamente 250 anos, que ele
investigou intensamente o poderoso papel dos valores não ligados ao lucro.
Enquanto afirmou que a "prudência" era "de todas as virtudes a que é mais útil
para o indivíduo", Smith argumentou que "humanidade, justiça, generosidade e
espírito público são as qualidades mais úteis para os outros".
Fora do
mercado
O que é exatamente capitalismo? A definição-padrão parece depender
dos mercados para transações econômicas como qualificação necessária para uma
economia ser considerada capitalista. De maneira semelhante, as exigências da
intenção de lucro e dos direitos individuais com base na propriedade privada são
vistas como características arquetípicas do capitalismo. No entanto, se esses
são requisitos necessários, os sistemas econômicos que temos atualmente, por
exemplo, na Europa e na América, são genuinamente capitalistas? Todos os países
afluentes do mundo -os da Europa, assim como EUA, Canadá, Japão, Cingapura,
Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e outros- dependem há algum tempo de transações
que ocorrem basicamente fora dos mercados, como benefícios de desemprego,
pensões públicas e outros elementos da seguridade social, além da provisão
pública de educação escolar e assistência à saúde. O digno desempenho dos
sistemas supostamente capitalistas em épocas em que houve verdadeiras
realizações foi baseado em uma combinação de instituições que ia muito além de
uma mera economia de mercado com vistas a maximizar os lucros. Muitas vezes se
esquece que Smith não via o puro mecanismo do mercado como um ator isolado de
excelência e tampouco considerava que a intenção de lucro fosse tudo o que era
necessário. Talvez o maior erro esteja em interpretar a discussão limitada de
Smith sobre por que as pessoas buscam o comércio como uma análise exaustiva de
todas as normas comportamentais e instituições que ele considerava necessárias
para uma economia de mercado funcionar bem. As pessoas buscam o comércio por
causa do interesse próprio -nada mais é necessário, como Smith discutiu em uma
declaração que é citada repetidamente, explicando por que os padeiros,
cervejeiros, açougueiros e consumidores buscam o comércio. Mas uma economia
precisa de outros valores e compromissos, como a confiança mútua, para funcionar
com eficiência. Por exemplo, Smith argumentou: "Quando as pessoas de um
determinado país têm tal confiança na fortuna, probidade e prudência de um
determinado banqueiro, a ponto de acreditar que ele está sempre disposto a pagar
sob demanda suas notas promissórias que podem lhe ser apresentadas a qualquer
momento, essas notas passam a ter o mesmo valor que o dinheiro de ouro e prata,
pela confiança de que esse dinheiro pode a qualquer momento ser havido por
elas".
Quebra de confiança
Ele explicou por que esse tipo de confiança
nem sempre existe. Apesar de os defensores da leitura
padeiro-cervejeiro-açougueiro de Smith consagrada em muitos livros de economia
poderem ter dificuldade para compreender a atual crise (as pessoas ainda têm
muitos bons motivos para buscar mais comércio, apenas menos oportunidades), as
consequências no longo prazo da suspeita e da desconfiança nos outros -que
contribuíram para gerar esta crise e tornam tão difícil uma recuperação- não o
teriam surpreendido. De fato, houve muito boas razões para a desconfiança e a
quebra de segurança que levaram a esta crise. As obrigações e responsabilidades
associadas às transações se tornaram nos últimos anos muito mais difíceis de
localizar, graças ao rápido desenvolvimento de mercados secundários envolvendo
derivativos e outros instrumentos financeiros. Isso ocorreu em uma época em que
a grande disponibilidade de crédito, conduzida em parte pelos enormes superávits
comerciais de algumas economias, sobretudo a China, ampliou a escala de
operações ousadas. Um credor de subprime que levou um mutuário a assumir riscos
insensatos podia transmitir os instrumentos financeiros a outras partes
distantes da transação original. A necessidade de supervisão e regulamentação
tornou-se muito mais forte nos últimos anos. No entanto, o papel supervisor do
governo, em particular nos EUA, foi, no mesmo período, reduzido acentuadamente,
alimentado por uma fé crescente na natureza autorregulatória da economia de
mercado. Exatamente enquanto crescia a necessidade de vigilância do Estado,
diminuía a provisão dessa supervisão necessária.Essa vulnerabilidade
institucional tem implicações não apenas para práticas astutas, mas também para
uma tendência à superespeculação, que, como afirmou Smith, costuma acometer
muitos seres humanos em sua busca incansável por lucros. Smith chamou esses
promotores de riscos excessivos em busca de lucros de "pródigos e projetores". A
fé implícita na sabedoria da economia de mercado autossuficiente, que é
amplamente responsável pela remoção dos regulamentos estabelecidos nos EUA,
tendeu a reforçar as atividades de pródigos e projetores de uma maneira que
teria chocado o expoente pioneiro dos fundamentos da economia de mercado. Apesar
de tudo o que Smith fez para explicar e defender o papel construtivo do mercado,
ele se preocupava profundamente com a incidência da pobreza, o analfabetismo e a
privação relativa que poderiam permanecer, mesmo em uma economia de mercado em
bom funcionamento. Ele queria diversidade institucional e variedade
motivacional, e não mercados monolíticos e a predominância singular da intenção
de lucro. Smith foi não apenas um defensor do papel do Estado para fazer as
coisas que o mercado poderia deixar de fazer -como a educação universal e a
ajuda aos pobres. Mas também defendeu, em geral, opções institucionais de acordo
com os problemas que surgem, em vez de se ancorarem as instituições a uma
fórmula fixa -como deixar tudo a cargo do mercado.
Reavaliação
Eu diria
que as dificuldades econômicas de hoje não pedem um "novo capitalismo", mas
exigem uma compreensão esclarecida de antigas ideias sobre o alcance e os
limites da economia de mercado.O que é necessário, acima de tudo, é uma clara
avaliação de como funcionam as diferentes instituições, juntamente com uma
compreensão de como diversas organizações -do mercado às instituições do Estado-
podem contribuir juntas para produzir um mundo econômico mais decente.
AMARTYA SEN é professor de economia e filosofia na Universidade Harvard.
Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1998. A íntegra deste texto foi publicada
no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .

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