quinta-feira, 12 de março de 2009

Analogias

Esses dias na faculdade fiquei sabendo de um trabalho em cima de duas grandes músicas que tratam da realidade social do Brasil. Uma das músicas é Meu Guri do velho Chico Buarque e a outra é de um tal Jorge, Seu Jorge, Problema social. Apesar de não ser trabalho da minha ossada, resolvi escrever sobre o tema e postar aqui.

Letras das músicas:

"O Meu Guri
Quando, seu moço, nasceu meu
rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de
fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe
explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me
disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha

Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega suado e veloz do
batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro,
seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo
dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de
documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu
guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega no morro com
carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele
chegar cá no alto
Essa onda de assalto tá um horror
Eu consolo ele, ele me
consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro
lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha

Olha aí, é o meu guri
E ele chega
Chega estampado, manchete,
retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa
gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá
rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu
moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri,
olha aí
Olha aí, é o meu guri."
(Chico Buarque)


Problema social
Guará/Fernandinho

"Se eu pudesse, dava um toque em meu
destino
Não seria um peregrino nesse imenso mundo
cão
Nem um bom menino que vendeu limão.
Trabalhou na feira pra comprar seu pão.
Não aprendia as maldades que essa vida
tem
Mataria a minha fome sem ter que roubar
ninguém
Juro que eu não conhecia a famosa
Funabem
Onde foi a minha morada desde os tempos de
neném
É ruim acordar de madrugada, pra vender bala no
trem
Se eu pudesse eu tocava em meu destino.
Hoje eu seria alguem
Seria eu um intelectual.
Mas como não tive chance de ter estudado num colégio
legal
Muitos me chamam de pivete
Mais poucos me deram um apoio moral
Se eu pudesse eu não seria um problema
social"

Agora, o texto:

Analogias

Composto nos anos 80, o desabafo romântico de Chico Buarque de Holanda sobre a questão social ainda retrata, agora mais que nunca talvez, a realidade da população segregada pelo sistema capitalista.

As favelas e os subúrbios brasileiros são frutos de uma arquitetura que visou mascarar a realidade, tapar os olhos, vendar a população, mostrar o lado limpo e afastar a pobreza dos olhos dos higienizadores sociais. Uma tentativa frustrada de realizar os intentos de Saint-Simon em curar as enfermidades sociais. Já segregados e explorados pelo capitalismo, que é selvagem, o Estado também se esquece de considerá-los em suas decisões, a não ser quando eles servem de massa de manobra para suas ações

São tantos os guris brasileiros, tantos rebentos prematuros “com cara de fome”, sem lenço ou documento nem para “cidadanizar”. Os meninos esquecidos pelo Estado de “bem-estar social”, não enxergam outra perspectiva de vida a ser a convivência vibrantemente paralela entre o morro e a cidade, entre o guri e o playboy.

É uma desordem social, causada ora pela extensão populacional, ora pela desigualdade. O processo de criar diferenças! O Estado exerce qual soberania? A de zelar pela ordem, pelo cumprimento da lei? Sim, o ente soberano cumpre a lei, a lei burguesa, o código penal de estereótipos.

Os cidadãos perdem suas pulseiras, relógios, bolsas, gravadores. Os guris perdem sua dignidade, se é que um dia a acharam. "Anda torta a humanidade!"

O guri é um problema social, ou o seria por que lhe foi etiquetado como tal? “Manchete, retrato / com venda nos olhos / legenda e as inicias” A venda nos olhos estariam nos olhos de quem realmente, nos olhos dos guris ou dos homens-cidadãos? A legenda é para que? Para vendar os olhos dos humanos e estereotipar os guris?

O aparelho estatal nos socializou e acostumou a aplicar sanções mútuas. O ritual social é útil na preservação do status quo inaugurado, na modernidade, com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Ideologias! são sempre uma roda no processo de civilização.

Assim como os guris que determinam seus objetivos de sucesso – correntes de ouro no pescoço, chaves, cadernetas – os homens que detêm o poder também o determinam e nada os impede de usar mecanismos legítimos ou não. Analogias.

E essa gente faz alvoroço demais, é só mais um guri no mato, de “papo pro ar”. É seu moço, sempre se chegar lá, não tem outra forma, para isso não. Ninguém foge da morte, é fato. É fato também a "tolerância zero" dos policias da "sociedade do medo". Analogias, de novo.

Heron de Carvalho.

3 comentários:

Alanna Coolerman disse...

E assim, o espelho se transformou em janela. Alice que o diga!

Laíza Braga Rabêlo disse...

Adorei o texto!!!
vc ja escutou Elsa Soares cantando meu guri? Massa!http://www.youtube.com/watch?v=NkpTV-xpiQM

bjos

César Choairy disse...

Caro Heron, adorei seu texto. O trabalho recomendei aos alunos do primeiro período. Bons resultados. Tomei conhecimento, como tá se tornando praxe, através do "trabalho" de uma pessoa que o entregou como sendo dela. Imaginei que não o fosse. Brilhante. Grande abraço. Choairy